Zurro#7
O estudante estimulado | Voto Direto | O Candidato | A Liberdade é como um barquinho de papel
O estudante estimulado
O estudante estimulado
deixou pra trás, contrariado,
o credor de sua dívida estudantil.
Mas o que são, afinal, 20 mil
Pra que comece a vida com sorte
Sem se preocupar com o calote?
Estimulado, o estudante,
Postura, agora, de devedor arrogante,
Deve, porém não paga; nega enquanto puder
E tendo em vista quem mais quiser
Agora a dívida de um já é de milhares,
E sem se preocupar com bancos, só com bilhares,
Vai o estudante, na flor da idade,
Gastando a dívida da faculdade.
(Alexandre Core)
***
Voto Direto
Enquanto o voto, que é função de crítica
Alta função do senso e da moral,
Da inteligência lúcida e analítica,
For exercido por qualquer boçal,
Hão de rir os patifes da política
Que ensangüentam esta capital,
Explorando a ilusão fasa e jesuítica
Do estafado sufrágio universal.
Por isso ó caro Gil Vidal, emprega
O teu talento e a tua sã razão,
A ver se se transforma esta bodega.
A não ser isso, faça-se a eleição
Para evitar depois o pega-pega,
No local apropriado: a Detenção...
(Emílio de Meneses)
***
O Candidato
O que passo a narrar agora aconteceu em novembro de 1992. Naquela época, motivados pelos votos que outros animais como o Macaco Tião (RJ) e o Rinoceronte Cacareco (SP) já haviam recebido em eleições passadas como uma forma de voto de protesto, a população de São João do Quentão teve a “grande” ideia de também lançar algum animal como candidato à Câmara dos Vereadores da cidade. E quem mais, se a ideia era protestar, poderia se encaixar tão bem no perfil do que um burro? Eis onde eu entro nessa história.
Era final de outubro para início de novembro. O povo, cansado de tudo que foi plano econômico, sequestro de poupança, magia negra, PC Farias… já andava de saco cheio (mal sabia que ainda haveria de piorar muito mais alguns anos depois) a tal ponto de, revoltados com a política nacional e também com a regional-local que outra coisa não é senão uma reprodução em escala micro do que acontece em Brasília em escala macro, resolveu que o Filonéscio – o famoso burro filósofo da Fazenda Gira Mundo – seria lançado “oficialmente” candidato a vereador. Como forma de protesto, todo os eleitores de São João do Quentão seriam convidados a votarem no burro que, diferente dos outros burros que já ocupavam aquelas cadeiras, mal nenhum poderia fazer à cidade já tão castigada pelos erros e malícias dos políticos.
Acontece que eu, um dândi de nobre estirpe e descendente direto da Casa de Davi, não concordava com aquela história. Num belo dia, veio o povo pedir, batendo na porta da fazenda, que o patrão liberasse o Filonéscio da lida na roça para poder fazer campanha no meio da praça. O patrão, para não desagradar a multidão – boa parte de amigos de longa data da lavoura – , achou por bem, ele mesmo, levar o burro aclamado pelo povo para fazer a tal da campanha.
Quando vi aquela turba, às gargalhadas, vindo em minha direção, pensei: – Ai minha Santa Burra de Balaão, livrai-me da tolice dessa gente idiota. Prometo até ser mais tolerante com as estúpidas, digo, com as amáveis ovelhas do senhor. – Mas já era tarde; em questão de minutos, eu já estava de paletó, gravatá e com um belo chapéu panamá (bonito mesmo…azar do velho que me deu, porque depois eu o comi), indo pela estrada de terra que liga a fazenda à cidade, com aquela turma de desocupados, militantes e bêbados fazendo festa atrás de mim.
O patrão puxava o cabresto com cuidado e algumas vezes olhava para a minha cara com um ar de “desculpe”, mas também com um certo riso nos lábios por imaginar o que se passava de irônico naquela fronte de equino grave e turrão. Não empaquei nenhuma vez, embora minha vontade fosse estancar no meio da ladeira e deixar que o povo zurrasse e suasse tentando me mover do lugar.
Mas, enfim, chegamos ao centro da cidade – a Praça. Não passe muito rápido porque do contrário você, nem viu, e já saiu do centro e está de novo na roça. No meio, construíram um palco e havia cartazes com a minha foto (na verdade era de um outro burro menos fotogênico do que eu), flores e até microfone. Só me faltava essa: querer que eu também faça discurso. Vou estourar os tímpanos dessa gente com meus “iiis” e “ãããs”. Tudo preparado de forma a convencer toda a São João do Quentão de que o voto no Filonéscio era mais útil que gastar a confiança com os candidatos da região que nada faziam pelo povo. Revezaram-se no palco algumas das vozes da região: Arquimedes, o farmacêutico. Dr. José Henrique Villa Nova, o médico. Reginaldo Florêncio, o floricultor. Seu Agenor Capislock, o jornalista…entre tantos outros.
Nessa altura do campeonato, depois de tanto discurso e da gravata me atormentando o pescoço, eu já havia comido o chapéu – de palha importada do Equador – até mesmo para poder ver melhor quem falava de mim. Estava chegando um momento, e perdoem a falsa modéstia, em que até eu comecei a achar que o que tantos homens doutos falavam de mim fazia sentido. Já me sentia Vereador, depois Prefeito e, fazendo carreira, quiçá Presidente, por que não?
Mas eis que na nossa cidade também morava um poeta. Desses que vivem seus dias mergulhados nos próprios pensamentos e papéis, rabiscando versos, explorando as palavras nos rincões da mente ou nas vastas pastagens de poemas que a Providência Divina mantém abertas aos que se aventuram ir lá caçar algumas letras. E ele, pedindo a palavra no palco de metro e meio de altura, lançou um discurso que até hoje o povo não esqueceu:
“Caros amigos de nossa Gloriosa São João do Quentão, eis que aqui estou para defender essa magra e desengonçada criatura (aí não!, já começou me esculhambando?) do que vocês, até com boa vontade pretendem fazer com ela. Não consideram que vosso protesto atinge mais ao pobre do Filonéscio do que os políticos em seus gabinetes acarpetados e refrigerados? Não consideram que, longe de ser natural, colocar paletó e gravata num burro, é um desrespeito a um trabalhador que, todos sabem, braçal? (Nessa hora também decidi, por bem, comer a gravata).
Longe de mim querer afirmar que a vossa causa não merece apreço ou voz, mas alguém se importou com a voz do asno? O que ele estaria nos dizendo agora?
“Povo tonto, servil, que não é meu amigo,
Não reconhecem a minha grande utilidade?
Se do campo me tiram para vir à cidade
Caçoar de minha aparência, escutem o que eu digo:
Não veem que mais importante que ser candidato
É o fato de eu ser um burro pacato?
E por que eu haveria de querer ser vereador
Se da terra, eu sempre fui um semeador?
No plantio, quem puxa o arado?
E na colheita, quem se carrega de sacas, parado?
E se adoece um velho, quem, no meio da noite, traz o doutor?
E quando enguiça o trator, quem faz a vez de motor?
Quando a gestante sofre de dor, quem traz, correndo, a parteira?
E quem, depois, leva pra escola o moleque, o livro e a merendeira?
Ou quando há algo de errado
Quem é o primeiro a correr trazendo o delegado?
E mesmo sofrendo com tanta pilhéria,
Lá vai o burro levando o resultado da féria.
Vereador, Prefeito, Governador, Presidente…
Quem se importa? Burro não mente
Não tem nem cacoete pra ser o vosso eleito
Nem de brincadeira, desculpem o mau jeito
Se há algo que se possa fazer pelo burro
É não se incomodar e entender o seu zurro
Deixar por conta dele o trabalho no arado
E, na medida do que é justo, diminuir o seu fardo
Não queiram, com tão nobre animal, o homem comparar.
Definitivamente, ele, o burro, não merece esse charruar.
Depois que o poeta encerrou o seu discurso, fez-se um silêncio de grilos, e logo depois se seguiu uma salva de palmas entusiasmada. Todos cumprimentavam o poeta e também vinham me cumprimentar. Pensaram em tirar-me o chapéu e a gravata, mas não haviam notado que eu já os havia comido. Tiraram-me então o paletó que já ia pelo mesmo destino.
O patrão estava satisfeito com o discurso do rapaz. O povo reconhecia a utilidade do nobre animal que, tantas vezes, é comparado ao homem, mas não por suas qualidades, e sim por defeitos que, garanto aos senhores, nós burros não temos.
Tiraram algumas fotos do evento que foram publicadas no jornal local. E lá estava eu, garboso, faminto, sem chapéu, sem gravata e também sem paletó. Ganhei uma espiga de milho de presente e o texto também foi parar no editorial da Folha de São João do Quentão. O povo agora agradecia o fato de eu não ser político, e sim, útil.
Voltamos para a fazenda, agora sem aquela multidão abestalhada vindo no rastro dos meus passos. O patrão só repetia:
– Grande dia, Filonéscio! Grande dia! E que grande discurso.
(Alexandre Core)
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A Liberdade é como um barquinho de papel
A Liberdade é como um barquinho de papel: perde-se com facilidade na correnteza da sarjeta durante um temporal de verão. Vai-se embora pela boca de lobo, antes que o menino mais rápido da turma consiga chegar para salvá-lo.
Já as tiranias são como as baleias: até deslizam pelas mesmas águas pluviais (se me permitirem a liberdade poética). Mas, oh!, quanta dificuldade é fazerem-nas descer por tão derradeiros ralos. Só na base de muito empurrão, facada ou explosão, é possível se livrar de uma baleia encalhada no meio fio.
(Alexandre Core)